Como o FDA Identifica e Nomeia Materiais Biológicos
Diferente de medicamentos químicos tradicionais, com estruturas moleculares simples e fáceis de replicar, os produtos biológicos são um universo de complexidade. Produzidos a partir de organismos vivos, como células ou bactérias, eles são grandes, complexos e inerentemente variáveis. Uma proteína terapêutica, por exemplo, pode ter uma estrutura tridimensional intrincada que é crucial para sua função. Essa complexidade apresenta um desafio regulatório único: como garantir que um produto biológico é seguro, puro e potente, e como sua identidade pode ser confirmada de forma inequívoca?
A Food and Drug Administration (FDA), agência regulatória dos Estados Unidos, desenvolveu um sistema mais sólido para a identificação, aprovação e monitoramento desses medicamentos. Esse sistema vai muito além de uma simples análise química, envolvendo um dossiê completo de dados de fabricação, testes analíticos e uma convenção de nomenclatura específica para garantir a rastreabilidade e a segurança do paciente.
Licença para Produtos Biológicos (BLA)
O ponto de partida para a aprovação de qualquer produto biológico nos EUA é a Biologics License Application (BLA). Este documento é um dossiê que um fabricante submete à FDA para obter permissão de comercializar seu produto. O objetivo central do BLA é fornecer evidências de que o medicamento é seguro, puro e potente para o uso pretendido.
Dentro do BLA, a seção sobre Química, Fabricação e Controles (CMC) é fundamental para estabelecer a identidade do produto. Nela, o fabricante deve detalhar:
O Processo de Fabricação: Desde a linhagem celular utilizada até os métodos de cultura, colheita, purificação e formulação final. O FDA adota o princípio de que “o processo define o produto”, reconhecendo que pequenas variações na fabricação podem levar a diferenças significativas no produto final.
Caracterização do Produto: O fabricante deve usar um arsenal de testes analíticos avançados para caracterizar a estrutura físico-química, a atividade biológica, a pureza e as impurezas do produto.
O BLA é a construção de um caso científico que prova, de forma conclusiva, a identidade e a qualidade do produto biológico, garantindo que cada lote produzido será consistente com o que foi aprovado.
A “Impressão Digital” Molecular
Um biossimilar é um produto biológico que é “altamente similar” a um produto de referência já aprovado pela FDA, sem diferenças clinicamente significativas em termos de segurança e eficácia.
Para um biossimilar ser aprovado, o fabricante não precisa repetir todos os longos e caros ensaios clínicos do produto original. Em vez disso, o foco muda para a demonstração de similaridade através de uma Avaliação Analítica Comparativa (Comparative Analytical Assessment, CAA).
A base da CAA é a identificação e comparação dos Atributos Críticos de Qualidade (Critical Quality Attributes, CQAs). Um CQA é uma propriedade física, química ou biológica que deve estar dentro de um limite ou distribuição apropriada para garantir a qualidade desejada do produto. Em essência, os CQAs são as características que podem impactar a atividade, a segurança ou a eficácia do medicamento.
Exemplos de CQAs incluem:
Estrutura Primária: A sequência de aminoácidos da proteína.
Estruturas Superiores: O dobramento tridimensional da molécula.
Modificações Pós-Traducionais: Padrões de glicosilação e outras modificações que podem afetar a função e a imunogenicidade.
Atividade Biológica: A capacidade do produto de realizar sua função terapêutica, medida por ensaios biológicos.
Pureza e Impurezas: A presença de agregados, fragmentos ou outras substâncias relacionadas ao produto que podem impactar a segurança.
A FDA considera a CAA uma ferramenta mais sensível para detectar diferenças entre dois produtos biológicos do que os próprios estudos clínicos. É através dessa análise da “impressão digital” molecular que a agência pode concluir que um biossimilar é, de fato, altamente similar ao seu produto de referência.
O Sistema de Sufixos de Quatro Letras
Uma vez que um produto biológico é aprovado, seja ele original ou biossimilar, a FDA precisa de um sistema para rastreá-lo de forma eficaz no mercado. Dado que os biossimilares são altamente similares, mas não idênticos, aos seus produtos de referência, a confusão entre eles na prescrição e dispensação poderia comprometer a segurança do paciente e dificultar o rastreamento de eventos adversos (farmacovigilância).
Para resolver essa questão, a FDA finalizou em 2017 uma orientação para a nomenclatura de produtos biológicos. A regra estabelece que o nome não proprietário de cada produto biológico (original e biossimilar) deve consistir em duas partes:
Nome Central (Core Name): O nome da substância ativa (por exemplo, “daxibotulinumtoxinA”).
Sufixo Distintivo: Um sufixo único de quatro letras minúsculas, desprovido de significado, anexado ao nome central com um hífen (por exemplo, “daxibotulinumtoxinA-lanm”).
O Propósito do Sufixo
O objetivo deste sufixo é claro: facilitar a identificação inequívoca do produto. Ao contrário de propostas iniciais que sugeriam sufixos baseados no nome do fabricante, a FDA optou por sufixos aleatórios e sem significado para evitar confusão caso os direitos de um produto fossem vendidos de uma empresa para outra.
Teve até uma situação interessante quando uma empresa solicitou a mudança das letras, a Hugel, que produz a toxina botulínica Letybo. Não gostaram da sequencia no nome da molécula: letibotulinumtoxinA-wlbg. Mas o pedido de mudança sequer foi aceito.
Este sistema garante que:
A Farmacovigilância seja Robusta: Se um paciente apresentar um evento adverso, o sufixo permite que os reguladores e profissionais de saúde identifiquem com precisão qual produto específico foi administrado, seja o original ou um de seus biossimilares.
Previna-se a Substituição Inadequada: Garante que os pacientes recebam exatamente o produto que lhes foi prescrito, evitando trocas não intencionais entre produtos que não foram designados como “intercambiáveis” pela FDA.
Haja Clareza na Prescrição e no Registro: Médicos, farmacêuticos e sistemas de saúde podem registrar e prescrever produtos biológicos com clareza, melhorando a segurança geral do sistema.
Como vimos, a abordagem da FDA para a identificação de materiais biológicos é um processo rigoroso que começa com a validação da fabricação e da identidade molecular através do BLA e da análise comparativa, e termina com um sistema de nomenclatura claro que garante a rastreabilidade e a segurança do paciente durante todo o ciclo de vida do produto no mercado.
Referências:
Combs KB, Brown NA, Jurden JAL. FDA Issues Draft Guidance with Updated Recommendations for Assessing the Need for Comparative Efficacy Studies in Biosimilar Development [Internet]. Akin Gump Strauss Hauer & Feld LLP; 2024 set 5 [citado 2025 nov 6]. Disponível em: https://www.akingump.com/en/insights/blogs/eye-on-fda/fda-issues-draft-guidance-with-updated-recommendations-for-assessing-the-need-for-comparative-efficacy-studies-in-biosimilar-development
Chow SC, Song F, Bai H. Analytical Similarity Assessment in Biosimilar Studies. AAPS J. 2016 May;18(3):670-7. doi: 10.1208/s12248-016-9882-5. Epub 2016 Feb 12. PMID: 26873509; PMCID: PMC5256601.
U.S. Food and Drug Administration. Biologics License Applications (BLA) Process (CBER) [Internet]. Silver Spring (MD): FDA; [atualizado 2023 set 27; citado 2025 nov 6]. Disponível em: https://www.fda.gov/vaccines-blood-biologics/development-approval-process-cber/biologics-license-applications-bla-process-cber
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U.S. Food and Drug Administration. Nonproprietary Naming of Biological Products: Guidance for Industry [Internet]. Silver Spring (MD): FDA; 2017 mar [citado 2025 nov 6]. Disponível em: https://www.fda.gov/media/93218/download


