Resolvi hoje escrever uma crônica ficcional. Será que acertei a mão? 🤘🏽
Em um vasto e cintilante reino num planalto central, onde a estatura é medida em milhares de seguidores e o poder, em engajamento, reinava soberana e desequilibradamente a Rainha Pryscila Rejane. Do alto de seu trono de smartphones – e de seus imponentes 135 centímetros de altura – ela governava seus súditos com decretos diários, não sobre a saúde bucal, que era sua formação original, mas sobre os mistérios do universo, as flutuações dos hormônios quânticos e a arte da Harmonização Facial.
Pryscila era, em teoria, uma mestre da Harmonização Orofacial. Em seu reino, "harmonizar" era a palavra de ordem, um conceito que ela aplicava com uma generosidade impressionante. Harmonizava os lábios das seguidoras, as finanças de quem comprava seu curso de "mindset milionário úniqo" e, principalmente, sua própria imagem, cuidadosamente filtrada a cada selfie e stories para parecer ter a estatura moral que lhe faltava na física.
A ironia suprema era que, enquanto prometia harmonia para os outros, ela vivia em completa desarmonia com o código que jurou seguir no passado.
Seus dias eram uma rotina sagrada. Passava mais tempo polindo o cetro do selfie do que folheando os pergaminhos da ciência odontológica. A coroa não era de ouro, mas de um LED circular perfeitamente posicionado. Para ela, um artigo científico publicado tem muito menos valor que um "story" viral com um "antes e depois" milagroso, cuja única magia era, muitas vezes, um ângulo de câmera favorável e uma iluminação apropriada.
A desordem em seu governo não passou despercebida. Vinte e tantos embaixadores dos reinos vizinhos – profissionais sérios, que ainda acreditavam na antiquada ideia de estudar – formalizaram uma queixa ao Grande Conselho dos Sábios de Molares e Incisivos, o temido CRO. Acusavam a Rainha de exercer sua magia harmonizatória muito além das fronteiras de sua competência e de promover um espetáculo antiético em sua praça pública, ainda que digital.
A primeira convocação ao Grande Conselho foi recebida por Pryscila como uma afronta. Como ousavam questionar suas revelações do Oriente?
Como ousam, os plebeus, questionar MINHA autoridade?? Justo eu que adquiri todo este conhecimento em um retiro aéreo em direção ao oriente médio?
Ela se defendeu com o argumento de que apenas "educava" suas massas. Que apenas "democratizava" o conhecimento. Dicas, ela chamada. “Meu dia a dia”, sem artificialidades. O Conselho, com a paciência de quem lida com uma criança birrenta e teimosa, emitiu uma advertência, um "puxão de orelhas real". Esperavam que ela entendesse o recado. Usualmente, em outras situações com pessoas que não eram da realeza, era o que bastava.
Mas para Pryscila, o chamado foi apenas um sinal de inveja.
Errar é humano!! berrava aos 4 ventos. Eu estou certa!
Chegou a pensar em sua benevolência que havia cometido seu primeiro e único erro.
Contudo, em vez de reajustar a rota de seu reino, ela pisou fundo no acelerador da imprudência. Os decretos se tornaram mais audaciosos. Promessas de rejuvenescimento quântico, dicas de como usar o botox para "alinhar os chakras nasais", tudo era transmitido do alto de seu palanque digital para seus milhares de seguidores
Inevitavelmente, a segunda denúncia chegou ao Grande Conselho.
Desta vez, o tom era mais grave. Os mesmos embaixadores, agora com mais evidências, demonstravam que o primeiro julgamento não servira para nada.
Pryscila fora julgada novamente, e a penalidade, mais dura. Uma suspensão temporária de seu "selo real", a licença para praticar sua "magia". Ela ficou furiosa!
A culpa, claro, era dos inimigos que conspiravam contra seu trono de filtros. Não fora ela que errara. Afinal, se os embaixadores não tivessem falado nada estaria tudo bem! Ela não via sua própria mão cavando o fosso ao redor de seu castelo.
Hoje, o reino de Pryscila Rejane parece o mesmo. A música é alegre, as luzes são brilhantes, e são 10, 15 stories diários com todos os temas que importam aos seguidores e ao reino. Mas há uma tensão no ar. Um sussurro se espalha de que a paciência do Conselho se esgotou e que a terceira convocação é iminente, e desta vez, definitiva. Mas a Rainha, em sua torre de marfim digital, parece não ouvir.
Alheia à derrocada que se avizinha, ela já planeja sua próxima grande expansão imperial. Seus sonhos não a levam mais apenas ao Oriente Médio. Agora, ela anuncia com entusiasmo que irá se aventurar pela Ásia, em busca da sabedoria ancestral da Coreia. Pensa em desvendar os segredos do K-Beauty e visitar as lojinhas de 1,99 de reinos distantes em busca de novos elixires. Mas ainda alheia ao fato de que os princípios que buscará, de certo, já estão disponíveis, sem a necessidade de um voo de 14 horas, na biblioteca de qualquer faculdade.
A história da Rainha Pryscila é um conto sobre a ilusão do poder digital. Sobre como é fácil construir um império sobre uma base de areia movediça e autopromoção.
Se errar é humano, insistir teimosamente no erro, ignorando todos os sinais e conselhos, esperando um resultado diferente enquanto se repete a mesma performance vazia, isso não é mais realeza nem falha humana. É simplesmente burrice. E não há harmonização no mundo que consiga disfarçar isso.