O mundo começou a acabar quando colocaram paçoca na pipoca
A obsessão pelo "mais" nem sempre é melhor
Tempo atrás fomos no cinema, não lembro qual filme fomos ver. Obviamente um filme tem que ter acompanhamento de pipoca.
A pipoca é perfeita em sua simplicidade. Milho explodido na manteiga, sal na medida, às vezes um nada de pimenta e aquela crocância que ecoa nos dentes e satisfaz as papilas gustativas (deu pra perceber que adoro pipoca, né? Não sei quem inventou de oferecer milho estourado antes dos filmes, mas não nego que foi uma idéia de gênio…)
Mas mesmo o filme não sendo de terror (isso eu lembro), fiquei aterrorizado na fila depois que vi um cartaz oferecendo pipoca com paçoca!!!!
Sim… PI-PO-CA-COM-PA-ÇO-CA.
Eu também adoro paçoca: Amendoim, um pouquinho de farinha de mandioca e açucar. Uma receita ideal há décadas! Não tem como ficar ruim.
Mas a coisa desandou quando, a pretexto de oferecer “mais sabor” (ou como se diz hoje: “uma melhor experiência”) somaram os dois. Pipoca + sal + manteiga + amendoim + farinha de mandioca + açucar…
Não me levem a mal em escancarar minha indignação, mas PORQUÊ??? QUEM FOI O MARQUETEIRO QUE CRIOU ISSO? (imagino eu: essa mistureba só pode ter sido criado por alguém muito muito longe do campo da gastronomia…).
Pipoca + manteiga + sal (ou açucar) é a mistura perfeita. Amendoim + farinha de mandioca + açucar também! Mas gastronomia não é matemática. Esta mistura bizarra apaga por completo toda nostalgia alimentar da pipoca e/ou da paçoca quando comidos separados…
Ahh, Rogério, você é muito mente fechada! Tem que pensar fora da caixa!
Não é questão de ser mente fechada ou não. É uma má escolha, é um exagero desnecessário. Além do que este “invento” bizarro não é exatamente a mistura de sabores que o Remy explica no filme Ratatouille….
Acho que me estenderia demais pra fora do tema se fosse comentar cada uma das “geniais” pipocas com Oreo, M&Ms, “calda de leite” 🤢🤢, e outras pseudogastronomices, então ficamos só na paçoca mesmo.
Enfim, depois de encarar o terror, me coloquei a pensar: Temos uma incapacidade crescente de aceitar que algumas coisas já nascem completas, ou praticamente completas.
Quando o rosto “harmonizado” vira um projeto
É exatamente o mesmo impulso que levou à pipoca de paçoca que contaminou nossa relação com a beleza. Não sei se beleza seria o melhor termo. Talvez o termo estética se aplique melhor.
Digo isso no termo filosófico mesmo: estética investiga o que é beleza, por que certas coisas nos agradam esteticamente e o que define uma obra de arte. É maior que a beleza, é a compreensão (ou tentativa de compreender) do que é belo naquele determinado local e momento histórico.
E hoje o momento histórico está mais pro Maximalismo. Um compulsão por tratamentos e intervenções cada vez mais superlativas. Lábios que eram proporcionais viram salsichas gordas. Malares que antes tinham personalidade se transformam em esferas uniformes. Narizes únicos são aparados e lapidados até virarem cópias uns dos outros.
E mais, mais, mais. Nunca há uma satisfação. Quantas vezes já ouvi pacientes falando que preferiam o lábio “cheio”, inchado que ficou imediatamente depois de um preenchimento do que o resultado natural de alguns dias depois. O que era pra ser sutil hoje, amanhã é insuficiente.
Parece uma corrida sem linha de chegada. Estamos todos jogando Enduro no Atari: nunca termina. Só se passa de fase, uma atrás da outra.
Será que essa nova geração de adeptos da harmonização facial estão fadados a serem a próxima Donatella Versace ou o próximo Mickey Rourke? Pelo andar da carruagem, e pelo pouco que acompanho de alguns professores de Instagram, não estranharia se isso acontecesse.
A busca dos “resultados naturais”
É paradoxal pensar que o mesmo Maximalismo que citei acima tem o foco em procedimentos para parecer "effortlessly beautiful". (Nos proximos parágrafos vou usar muitos jargões da estética tiktoker, se segura aí)
Eu, como pai de menina, já vi muito video de maquiagem no Youtube. Muitos. Muitos MESMO.
E sei que hoje se fala muito do “no-makeup look”, ou seja, uma forma de se maquiar para ficar com um aspecto “sem maquiagem”, ou com uma “beleza natural”, com muitas aspas. E pra isso são necessárias toneladas de caríssimas maquiagens para alcançar esse visual natural.
Ou seja, não é só lavar o rosto de manhã, passar um hidratante e um protetor solar pra ficar com o rosto natural. Isso não deixa o rosto natural…
Pra ficar MESMO com um rosto natural você precisa, primeiro, enganar a pele com primer pra deixar ela lisinha, depois aplica base para esconder todas as evidências de que você é humana, seguido de corretivo para apagar aquelas marquinhas inconvenientes, ou até mesmo dar uma afinadinha no nariz, uma marcadinha no malar. Não esqueça do pó para selar. Nos olhos, a sombra bem fraquinha, quase inexistente, depois um pouquinho de delineador pra dar a impressão que os olhos são maiores do que realmente são. Pra fechar com aquele rubor natural artificial tem que utilizar um bom blush numa cor mais suave, obviamente num “tom natural”. Não esqueça daquele batonzinho de leve, sempre depois do lápis de boca “cor de boca” pra ficar tudo natualmente natural. Ah, e pra ficar natural por mais tempo, um bom fixador dá conta disso…
Pronto. “No-makeup” usando “a shitload of makeup”. Nada mais maximalista que isso…
Usei o exemplo da maquiagem que fácil de observar, mas neste mesmo rumo está a Harmonização. Hoje, mais é mais.
Se seu feed do Instagram tiver um monte de profissionais que trabalham com harmonização (como é nosso caso), você vai ver uma geração inteira de “harmonizadores” que tem rostos que parecem ter saído da mesma linha de produção: mesmo labio, mesma projeção malar, mesmo contorno mandibular, mesma maquiagem, mesmo alinhamento dentário construidos a base de lentes de contato, todas brancas e reluzentes como um vaso sanitário no mostruário da Leroy Merlin. E os mentos!! Os mentos de hoje em dia parecem mais o do Dick Vigarista!!
É como se a busca obsessiva pela individualidade tenha levado à mais absoluta uniformidade. E mais: os resultados iguais virou o novo natural, a nova referência do que é bonito ou não.
O algoritmo da insatisfação
Não vou voltar à baila sobre as redes sociais terem se transformado em um grande catálogo de produtos e serviços, além de serem um espelho deformado coletivo.
Isso, você SABE.
O que me assusta é a escala que isso acontece. Não sei se vivo numa bolha em que estas coisas são exarcebadas, mas me dá impressão que para o usuário regular as redes sociais transmitem uma sensação permanente de que ele está em déficit estético.
Quem gosta do tema beleza e estética vive sendo alimentado com um fluxo infinito de “antes e depois”, com os milagres do creme X, com a técnica de preenchimento inovadora e “natural” do profissional Y, modelos, atrizes e influencers fazendo chá de revelação do novo visual depois da lipo, da harmonização, do peeling.... É um mercado que só funciona porque implanta, artificialmente vale dizer, a insatisfação perpétua com o rosto, com o corpo, com a pele, com o cabelo, com a humanidade das pessoas.
Quando uma espinha deixou de ser natural num adolecente? Eu vejo minha filha penando para esconder as várias espinhas que invariavelmente aparecem nessa idade (e irão aparecer no rosto dela nos próximos anos…) Lembro de vários amigos que eram chamados de Chokito no colégio e cujo apelido só mudou na faculdade sem que ele ficasse traumatizado com isso. Espinha é espinha e todo mundo tem ou teve. Era comum, normal.
Hoje parece ser inadmissível ter uma espinha, imagine dar um apelido destes pra algum colega! E pra resolver este problema, maquigem, filtros de instagram, vários recursos. Muita tecnologia envolvida!
O paradoxo da simplicidade
E é engraçado que todo o exagero vende pregando o menos exagero. Tenho CERTEZA que vc já viu uma postagem com visual minimalista no instagram com a frase
A simplicidade é a maior sofisticação
Essa frase é curiosa, vem de um romance dos anos 30 da dramaturga Clare Boothe Luce que colocou na boca de um personagem de seu romance "Stuffed Shirts" uma frase que se tornaria mantra desta geração de exageros: "Eu resolvi envelhecer natural e graciosamente, contente no conhecimento de que os maiores intelectos são os mais simples, e que o auge da sofisticação é a simplicidade".
Mas o que ninguém sabe é que esta frase saiu da boca de um personagem ricaço querendo pagar de humilde. À época, era uma critica ao que hoje deixou de ser exceção. Tipo o Zuckerberg quando apareceu em publico este ano:

Hoje temos uma corrente sendo formada: expressar a individualidade modificando para parecer com influencers que, por sua vez, se modificaram para parecer com outras influencers, e outras, e outras, e outras.
No final o influencer de ontem sempre vai ser o rascunho do influencer de amanhã. Tudo isso enquanto prega-se a "beleza natural" e a "simplicidade sofisticada".
Imperfeição Calculada
Eu e a Roberta assistimos toda a série Peak Blinders há uns 2 anos. E tinha uma personagem que depois virou a esposa do Tommy Shelby interpretada pela atriz Annabelle Wallis, que entre uma temporada e outra apareceu com o nariz operado. Não foi uma revolução estética, o novo nariz tava até bonito. Foi engraçado porque na mesma hora falamos um para o outro: “ela ficou sem personalidade com este nariz novo”. Não personalidade no sentido da personagem ser sem sal, nada disso. Ela ficou com uma beleza… comum.
Se no passado se valorizava algo mais real, hoje a valorização é do “natural” minuciosamente construido. Basta olhar para Marilyn Monroe, considerada por muitos o ápice da beleza feminina do século XX.
Ela tinha curvas reais, texturas naturais na pele, uma pequena saliência abaixo do umbigo, e sim, provavelmente celulite – todas as características que hoje seriam "corrigidas" antes mesmo de uma foto ser publicada. Marilyn era sexy justamente porque era real. Seu corpo e rosto contava uma história humana, não foi um projeto de engenharia cosmética.
Hoje a regra é retocar. Se não dá pra fazer na realidade, a imagem tem que ser editada.
É até engraçado imaginar que uma atriz como Paolla Oliveira tenha que explicitamente exigir para que suas fotos profissionais não sejam retocadas. Como ela mesma revelou: "Cheguei ao ponto de pedir para devolver meus volumes, minha perna, minhas dobrinhas. Estou muito satisfeita em não precisar me modificar".

A diferença entre Marilyn e Paolla? Marilyn era natural porque ainda não existia o photoshop ou os filtros de instagram. Paolla precisa lutar para ser natural numa época em que isso se tornou uma escolha contracultural.
Paolla Oliveira entendeu que às vezes, a maior sofisticação é ter a coragem de não se "sofisticar". E vocês já viram o quanto de paulada e críticas ela recebe por isso? Taxada de gorda, acima do peso, que não merecia ser rainha de bateria…
O bom senso não existe
Falo isso faz muito tempo: a régua do bom senso não é universal. O bom senso seria um freio pra evitar os exageros, mas tem gente que gosta de velocidade e não importa de ratear nas curvas.
Por isso, não adianta pedir bom senso, tem que reaprender a arte da contenção.
De entender que nem toda “melhoria” é uma melhora. Que nem toda possibilidade técnica deve ser explorada (aqui é o famoso “posso, mas nem tudo me convém”). Que a beleza mais duradoura é aquela que envelhece junto conosco, que conta nossa história em vez de tentar apagá-la.
Este não é um libelo reacionário contra da Harmonização Facial e todas suas terapêuticas. É sim para que toda uma ciência desenvolvida para procedimentos de “refinamento estético” passe a cumprir sua função de refinamento estético, não de alteração distópica da beleza humana.
A pipoca com paçoca não é só um erro gastronômico: é um sintoma de uma sociedade que aparentemente perdeu a capacidade de reconhecer quando algo já está bom o suficiente.
Hasta.